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Em: 26/06/2015

Cientista tem que ter apetite!

Vejo cada vez mais alunos que parecem totalmente perdidos em seus estágios, mestrados ou doutorados. Alguns dão a impressão de estar sofrendo o tempo todo. Outros seguem a passos lentos, devagar, quase parando. Quero dar a eles um conselho duro, mas fundamental.

O fato é que a ciência profissional é uma carreira muito difícil e competitiva, que requer um investimento pessoal descomunal e dá muito mais retorno para a mente do que para o bolso. Assim, beneficiar-se das descobertas da ciência é para todos, mas fazê-las é para quem tem o perfil psicológico e o treinamento corretos. Assim, para alertar pessoas que talvez estejam no caminho errado, antes que elas desperdicem muito tempo, energia e dinheiro e depois se arrependam de escolhas malfeitas, resolvi escrever sobre algo essencial para um “aspira” da ciência: o apetite.

Como nos cursos de ciências naturais das universidades públicas (Biologia, Ecologia, Física, Química etc.) a maior parte dos exemplos de profissionais (role models) que os alunos têm são os próprios professores com contratos 40h+DE (i.e., quarenta horas por semana, com dedicação exclusiva), que são acadêmicos por natureza, muitos acabam achando que a carreira acadêmica é a única opção existente ou talvez a melhor de todas. Esse problema é menor ou inexistente em carreiras como Medicina ou Direito, nas quais a maioria dos professores trabalha em outros empregos, em paralelo às aulas, com um regime 20h ou 40h sem DE, dando aos alunos exemplos concretos de outros possíveis caminhos profissionais.

Bom, caro aspira, só na Biologia existem muitas outras possibilidades. Ninguém é obrigado a ser cientista! Somando a essa cisma o acesso pouco seletivo aos programas de pós-graduação que temos hoje em dia, com ingresso fácil demais nos piores cursos e bolsas garantidas para a maioria dos alunos nos melhores cursos, o resultado é um monte de gente na pós-graduação que não tem a menor vocação para estar ali. Não quer dizer que essas pessoas não seriam bons profissionais em outras carreiras: elas apenas estão vivendo a vida de outra pessoa, como diria o Steve Jobs.

Não adianta querer dar uma de camarada e enganar os aspiras com falsas esperanças, como muitos colegas fazem. É preciso uma combinação rara de características pessoais para progredir na carreira acadêmica e fazer da construção de conhecimento novo o seu ganha-pão. No mínimo, você tem que ser curioso, inteligente, disciplinado, perseverante e saber receber críticas. E trabalhar realmente duro. Não estou dizendo que cientistas são pessoas especiais, os “escolhidos”, blablabla. Estou dizendo apenas que, em carreiras de alto nível, como a ciência, a música de orquestra, o alto sacerdócio ou um esporte olímpico, não basta ter apenas um ou alguns dos traços de personalidade necessários à respectiva carreira. Você tem que ter todos esses traços de personalidade, receber treinamento adequado e ainda usar os seus dons de forma inteligente.

Além disso, como nunca me canso de repetir, não há nenhuma outra razão para querer se tornar um cientista, além de ser obcecado por perguntas e ter uma fome de conhecimento insaciável. Não se iluda: após décadas de investimento na sua formação, sem garantia alguma e sob enorme pressão, se você arrumar mesmo um emprego estável na Academia, seja como professor ou pesquisador, a maior parte das recompensas que obterá será puramente intelectual e não financeira ou social. Praticamente ninguém fica rico ou famoso fazendo ciência, ainda mais no Brasil, onde professores, pesquisadores e intelectuais de um modo geral são vistos com pena, desdém ou ódio.

Assim, a motivação para ingressar na Jornada do Cientista deve vir de dentro de você mesmo, aspira. Um estudante acadêmico que precisa de elogios ou chicotadas o tempo todo certamente está cursando a carreira errada. Assim, fica a dica: preste atenção a alguns sinais reveladores. Aqui vou comentar sobre algumas barbaridades que tenho ouvido cada vez com mais frequência entre muitos aspiras (não todos, felizmente!). Se você se identificar com qualquer um desses sinais, search your feelings e repense as suas escolhas profissionais.

1. “Eu acho tão chato ter sempre uma pilha de artigos e livros para ler”
O que você está fazendo na universidade então? A universidade é (ou deveria ser) o templo do conhecimento, onde ler é um prazer, um vício, e nunca uma obrigação. Se você só quer saber de “ler” nas redes sociais e tem preguiça de abrir um livro grande, sem figuras, vá fazer qualquer outra coisa, menos ser pesquisador ou professor. Há inúmeras profissões por aí e muitas delas não requerem tanto esforço intelectual quanto exigido na Academia. A sociedade precisa de um pequeno número de cientistas, mas de um grande número de profissionais liberais, técnicos e trabalhadores manuais bem treinados e bem remunerados. Todos os tipos de profissão honesta são importantes e honrados. Se estudar para o resto da vida não é a sua praia, não tenha vergonha disso levante âncora e parta para outros mares. Só não dê murro em ponta de faca. Se você não tem apetite pela leitura, por que escolheu uma carreira onde os livros são o ar que se respira?

2. “Eu adoro fazer estágio no meu lab, mas ando tão sem tempo para as atividades que o meu orientador inventa”
Você acha que a sua falta de tempo vai melhorar ao longo da carreira? Você acha que professores ficam de pernas ao ar, enquanto apenas os alunos, coitados, é que trabalham duro? Ao progredir em cada fase na Jornada do Cientista, mais complicadas as coisas ficarão. Se você achar a graduação pesada demais, certamente vai chorar no mestrado (a pós-graduação é o lugar onde a criança chora e a mãe não escuta…). Se você achar o mestrado pesado demais, certamente vai entrar em depressão no doutorado. Se, mesmo com essa preguiça toda, você conseguir entrar em um doutorado, mas achar o curso pesado demais, provavelmente não vai conseguir uma vaga depostdoc e a sua carreira estará com os dias contados. O ponto é que, desde cedo, se você não entender que gerenciar bem o seu tempo é fundamental não só no trabalho, mas também na vida pessoal, então não vai chegar muito longe na Academia e nem nas suas relações familiares, amorosas e amistosas. Tempo livre não se pede, não se espera: se inventa. Se você realmente ama a ciência e quer ser um profissional do conhecimento, então vai ter que dar um jeito de arrumar janelas de tempo para o seu estágio, mesmo que a carga de aulas da graduação seja massacrante no Brasil. Se não tem apetite pelo seu estágio, por que não vai fazer outra coisa?

3. “Meu orientador vive me perturbando, perguntando se eu já fiz a análise X que ele recomendou. Poxa, ele precisa ficar perguntando a mesma coisa a cada seis meses?”
Aspira que só funciona na base do controle remoto está na carreira errada. Ponto. Seu orientador sugeriu X para você fazer na tese? Então faça não apenas X, mas apresente a ele 3X na próxima reunião. Não é para impressioná-lo, mas sim porque você está apaixonado pelo seu projeto. Orientador não é babá. Orientador não é psicoterapeuta. Orientador não é confessor. Orientador serve para tirar dúvidas, apontar caminhos e ensinar habilidades essenciais. Uma vez que o seu orientador te abriu uma determinada porta, passar por ela e trilhar o caminho apontado cabe única e exclusivamente a você. A tal análise X que ele te pediu certamente é somente a ponta de um iceberg. Descubra o tamanho dessa montanha de gelo! Um bom aspira da ciência não precisa andar de mãos dadas: ele tem tanta iniciativa e curiosidade, que caminha sozinho, mesmo que tropece muitas vezes. Uma das principais coisas que separam quem tem vocação para cientista de quem não a tem é a disposição para trabalhar sempre um pouco mais. Se você mesmo não tem apetite pelo seu projeto, por que decidiu desenvolvê-lo?

4. “Estou até agora esperando o meu orientador me explicar o tema Y. Enquanto eu não receber esse feedback, não saio do lugar”
Qual de voces dois já tem o título acadêmico em questão (BSc, MSc, PhD etc.): você ou o seu orientador? Ah, ele, não é mesmo… Então a tese é sua, não dele. Corra atrás! A vontade de responder a pergunta proposta no projeto deve vir de você. A iniciativa e a empolgação devem vir de você. É você quem deve ficar obcecado por montar o tal quebra-cabeças. É você quem deve correr atrás de aprender as habilidades e conhecimentos de que precisa. Não espere o seu orientador: estude, trabalhe, progrida. Conte com ele para ajudar a focar melhor sua energia. Mas nunca conte com ele para dar o próximo passo. Se você não tem apetite pelo caminho, por que trilhá-lo?

5. “Nossa, não cumpri uma obrigação Z exigida pelo meu PPG. Tudo bem, pois eles têm que ser compreensivos já que eu não tenho experiência, né?”
Sério que eu preciso explicar isso para adultos? Na cultura brasileira somos tolerantes demais com malandros, enrolados e preguiçosos. Deveríamos guardar a nossa compaixão para quem realmente a merece, não a desperdiçando com bebês adultos. Não inverta os valores! Se você ingressou em um determinado programa de pós-graduação, automaticamente fica implícito que você aceitou o respectivo estatuto, regimento, normas etc. Te deram um prazo para a qualificação? Cumpra-o! Te deram um prazo para a defesa da tese? Respeite-o! Estipularam uma qualidade mínima aceitável para uma tese ser aprovada? Supere-a! Ninguém tem que ser compreensivo: você é que tem que ser responsável e proativo. Se você não tem apetite pelas tarefas inerentes a uma pós-graduação, por que cursá-la?

Conselho final
Foi você quem escolheu ser cientista, então mexa-se. Ninguém te deve nada, você não é especial e o sucesso nasce do trabalho duro.

Texto: Dr. Marco Mello / Universidade de Minas Gerais
Publicado originalmente em:
 <https://marcoarmello.wordpress.com/2015/06/26/apetite/>
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