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Carnívoros por natureza:

revelando os hábitos alimentares de felinos silvestres brasileiros

Apesar de parecidas, cada espécie desenvolveu estratégias próprias para encontrar alimento e evitar competição

    Conhecer os hábitos alimentares dos animais é o começo para entendermos outros aspectos ecológicos de suas vidas. Especialmente com mamíferos predadores de topo de cadeia alimentar, saber o que eles comem torna possível entender o papel destas espécies no ecossistema, sendo também o primeiro passo para se pensar em planos ou estratégias de conservação para espécies ameaçadas.

        Do que se alimentam? Quão parecidas são as dietas das espécies? E o que se pode inferir sobre a ecologia dos animais com base no que eles comem? Isso é o que pesquisadores da Universidade Federal do Pampa e colaboradores buscaram responder em um estudo que comparou a composição da dieta de quatro espécies de pequenos felinos na região do Pampa brasileiro. O trabalho completo foi publicado na revista científica PLOS ONE.

Pequenos predadores

     O Rio Grande do Sul é o estado com a maior diversidade de felídeos silvestres do Brasil. São oito espécies distribuídas pela Mata Atlântica, ao norte, e Pampa, ao sul do estado. Nesse grupo estão grandes felinos como o puma e a onça pintada (hoje infelizmente restritos a poucas áreas do estado) e a jaguatirica. Porém a maioria são felinos de pequeno porte, que pesam de 3 a 6 kg. Eles não são tão famosos quanto à onça, mas sem dúvida são tão misteriosos e fascinantes quanto.

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      O estudo desenvolveu-se baseado no exame do conteúdo estomacal de 98 animais. Este material foi obtido recolhendo os felinos vítimas de atropelamentos ao longo das estradas do estado. Através da análise dos itens que não eram digeridos, como penas, pelos, dentes e patas os pesquisadores conseguiram identificar 37 diferentes tipos de presas.

     A dieta dos quatro felinos foi composta essencialmente por animais vertebrados. Mamíferos foram o tipo de presa mais consumido, especialmente roedores. Aves aparecem como o segundo grupo de itens mais comum, enquanto répteis e anfíbios podem ser considerados itens complementares à dieta, devido à baixa ocorrência em relação aos demais.

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Parecidos, mas diferentes

      O mais gaúcho dos felinos, o gato-do-mato-grande, é a espécie mais comum dos Pampas, e parece ser também o menos exigente no quesito alimentação, já que foram encontrados 25 tipos de presas na sua dieta. E isto inclui animais dos mais diversos hábitos, desde mamíferos terrestres, como cutias e lebres, até marsupiais arborícolas, roedores semi-aquáticos (que vivem associados a cursos d’água) e semifossoriais (que tem algumas atividades em baixo do solo). Essa ampla diversidade de alimentos pode ser uma estratégia importante para sua sobrevivência em frente às constantes mudanças que o Pampa vem enfrentando nas últimas décadas, como a perda de áreas naturais para pecuária e agricultura.

       Enquanto isso, o gato-maracajá parece ser o mais “diferentão”, apresentando apenas 30% de similaridade com os outros felinos. Comparando com o gato-mourisco a semelhança é ainda menor (apenas 10%). Os dois consumiram apenas sete tipos de presa em comum, mas em proporções bem diferentes. É possível que o gato maracajá, por ter um corpo mais adaptado à vida nas árvores, com olhos grandes, cauda longa e patas com calcanhares flexíveis, explore mais esse ambiente do que os outros felinos. Além disso, foi ele quem consumiu mais presas de hábitos arborícolas, como pequenos marsupiais e filhotes de aves que fazem seus ninhos em árvores.

      Mas foi uma presa que chamou atenção: o preá (Cavia aperea). Este roedor, muito comum de ser visto em beiras de estradas, foi alimento para todos os felinos, mas a um deles em especial, o gato-mourisco, já que esteve presente em 70% dos estômagos analisados.

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       O preá é um animal crepuscular, ou seja, é mais ativo ao amanhecer e ao final da tarde, horários que se sobrepõe ao início e o final do horário de caçada de todos felinos, se tornando assim presa fácil para eles.

      Aliás, o gato-mourisco é notável por ser o único felino, das quatro espécies estudadas, que apresenta maior atividade durante o dia, já que os outros três saem preferencialmente à noite para caçar. Isto pode ser visto como uma estratégia que permite ao gato mourisco evitar competição com os outros gatos, já que caça enquanto os outros estão descansando. Além disso, é considerado o mais terrestre dos pequenos felinos brasileiros, caçando poucas presas em cima das árvores.

     O gato-palheiro, além de ser o felino mais raro do estado, é também o mais difícil de ser estudado. Pouco se sabe sobre seus hábitos de vida na natureza. O que se pode, por enquanto, é deduzir alguns de seus hábitos com base no que ele come. Como os itens mais importantes de sua dieta incluíram animais que vivem principalmente em campos abertos com cobertura arbustiva e bordas de banhados, como preás e perdizes, isso pode ser uma indicação de que este felino também prefere estes ambientes para viver (ou ao menos para se alimentar).

 

Caçadores de rato

     Diferente do que muitas pessoas acreditam estes felinos não são vorazes comedores de aves domésticas. Galinhas corresponderam a apenas 1,4% dos itens consumidos pelo gato-do-mato-grande e no caso do gato mourisco, gansos corresponderam a apenas 3,4% de sua dieta. Na verdade, em apenas dois dos 98 estômagos analisados havia restos de animais domésticos. Estes felinos devem ser vistos na verdade como aliados e não vilões, já que se alimentam basicamente de roedores.

     É importante desmistificar falsas impressões, pois muitos são capturados e mortos, agravando mais a ameaça de extinção das espécies. O impacto econômico causado pelos gatos do mato certamente é mínimo comparado com o benefício da presença destes animais, e não justificam essas práticas. Em sua defesa, para cada ave doméstica, eles consumiram quase 70 ratos, que inclui além dos nativos, os roedores exóticos (que podem ser transmissores de doenças e pragas agrícolas). 

Curiosidade: você já se perguntou...

 

Por que os gatos não podem ser vegetarianos?

 

Ao longo de milhões de anos de evolução a família Felidae se diversificou nas mais de 40 diferentes espécies que conhecemos hoje ao redor do mundo. Porém, esse mesmo tempo também moldou os hábitos alimentares dos felinos para um mesmo caminho. Todos, desde o majestoso tigre, até o pequenino gato-do-mato, são hipercarnívoros, ou seja, comem exclusivamente carne.

O corpo de um felino é, em essência, um reflexo dessa dieta. Dentes cortantes, garras afiadas e um intestino curto adaptado para processar carne: esta é a estrutura corporal básica destes carnívoros obrigatórios. Diferente dos humanos e cães, gatos não conseguem obter alguns nutrientes-chave a partir de uma alimentação à base de vegetais. Isso porque muitas vitaminas e aminoácidos que os gatos precisam só podem ser obtidos no consumo de carne. Gatos também necessitam de maiores proporções de proteínas na sua dieta do que qualquer outro mamífero.

Texto

Raissa P. M. 

Laboratório de Biologia de Mamíferos e Aves

Universidade Federal do Pampa

Em 24/09/2018

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